terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Que é que te habita, que é que está em ti e és tu!?


"(...) Então, bruscamente, ataca-me todo o corpo, as vísceras, a garganta, o absurdo negro, o absurdo córneo, a estúpida inverosimilhança da morte. Como é possível!? Onde a realidade profunda da tua pessoa, meu velho!? Onde, não os teus olhos, mas o teu olhar!?, não a tua boca mas o espírito que a vivia!? Onde, não os teus pés ou as tuas mãos mas aquilo que eras tu e se exprimia aí!? Vejo, vejo, céus, eu vejo aquilo que te habitava e eras tu e sei que isso não era nada, que era um puro arranjo de nervos, carne e ossos agora a apodrecerem. Mas o que me estrangula de pânico, me sufoca de vertigem é teres sido vivo, é tu estares ainda todo uno para mim, na memória do teu riso, no tom da tua voz, que era lenta, sossegada, nas ideias que punhas a viver entre nós, na realidade fulgurante de seres uma pessoa. Recordo-te totalizado, olho-te. Que é que te habita, que é que está em ti e és tu!? Não, não é a carne, não é o corpo: é aquilo que lá mora, aquilo que ainda dura de ti nestas salas, neste ar, aquilo que eras tu, o teu modo único de ser, aquilo a que nós falávamos, atravessando a tua parte visível. E no entanto, sei, sei que esse tu real que te habitava não era senão a tua morada; como o espaço de uma casa, a intimidade do home, são as paredes que o fazem: derrubada a casa, a intimidade que lá havia também morre. E desde quando o sei, desde quando!? A verdade aparece e desaparece (...) Que fazemos nós na vida? Que íncrivel pertinácia nos resolve numa ilusão toda a imensidade do milagre de estar vivo!? Era necessário que todos os homens vivessem em estado de lucidez, se libertasssem das pedras - estamos condenados a pensar com palavras, a sentir com palavras,, se queremos pelo menos, que os outros sintam connosco. Mas as palavras são pedras. Toda a manhã lutei não apenas com elas para me exprimir, mas ainda comigo para apanhar a minha evidência. - chegassem ao milagre de ver. Era absolutamente necessário que a vida se iluminasse na evidência da morte. Mais real do que o nascer é o morrer. Porque quem nasce é ainda nada. Mas quem morre é o universo, é a pura necessidade de ser. Um homem só é perfeito, só se realiza até aos seus limites depois de a morte não o poder supreender.(...)"
Vergílio Ferreira, Aparição