segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Mea reflexionem in speculo


Saí do banho. 
Cá fora estava frio.
E o frio queimava-me as vísceras. 
E as vísceras queimavam-me a alma.
E a alma temia o frio, ocultando o seu próprio reflexo num embaciado esmiuçado. 
Tal como um espelho 

  Enrolei-me na toalha. Tentando envolver todo o meu corpo nú. Encolhendo-me, numa tentativa frustrada de me tentar aquecer, de um modo totalmente primitivo. Talvez fosse isso, talvez não passássemos de primatas, controlados por actos conscientemente inconscientes. 
  À minha frente tinha um espelho, em forma rectangular, ofuscado por vapor de água. Passei-lhe a mão, sentindo o frio entranhar-se num estado de espírito. Foi assim que, de imediato, o vi. Feições pesadamente fortes, cabelo ondulado, olhos abruptamente pretos, nariz obtuso, sobrancelhas densas, barba serrada. O rosto fechado a 7 chaves, sem nenhum trejeito de sorriso, desbravando-se apenas alguma inquietude no olhar. Admito, assustei-me deveras com aquele rosto. 
Interroguei-o, interroguei-me. "Quem és tu!?"
  O rosto manteve-se calmo, impreterivelmente calmo . Mas os olhos brilharam face à acuidade da questão. Respondeu-me, respondi-me. "Eu sou o Eu.". 
Questionei-o, questionei-me. "E quem é O Eu!?".
Afirmou-me, afirmei-me "O tudo, o nada, o cosmos e a realidade.  O ninguém, a plenitude, o vazio, a imperfeita perfeição." Perguntei-lhe, perguntei-me. "Sentes o que eu sinto!? Vês o que eu vejo!? Compreendes o que eu não compreendo!?". 
Retorquiu-me, retorqui-me. "Sim. Eu sou tu e tu és eu, somos dois, três, quatro. Ainda assim, somente um. Desdobrando-nos numa multiplicidade de perspectivas, de ângulos, de poliexistências. Deixa. A dor é partilhada e o conhecimento acumulado mas não alargado.". 
Acenou, acenei com a cabeça. "Porquê!?".
 Pareceu confuso, ostentando feições mais bruscas, movendo as sobrancelhas violentamente. "Porque é que estás diferente!?". 
Tentou responder-me, responder-me. "É assim. O tempo leva-nos, o tempo corrói-nos incessantemente, o tempo não perdoa, e sabes quem controla o tempo!? Ninguém. E quem é ninguém!? É Alguém, ninguém pode ser ninguém, mas não és tu. O Tempo é o Tempo. E acredita que Ele vai-te enganar, mentir, ocultar. Vai ser o teu pior inimigo, tentando parar-te o tempo, sabendo que o tempo não existiria caso não tivesses mais tempo." 
Argumentei-lhe, argumentei-me. "O tempo!? Dizes que o tempo é o responsável pela mudança!? Não foi o tempo quem me fez isto, foste tu." 
Argumentou-me, argumentei-me. "Sim de facto, não pode ser o tempo. O tempo não existe."
Desta vez o rosto perdeu o fio à meada, esboçou um olhar raivosamente incrédulo, como se querendo magoar o seu conversador, como se querendo magoar-se a si mesmo.
Perguntei-lhe, perguntei-me. "O tempo não existe!? Se o tempo não existisse nós também não existiríamos!"
Sorriu.
"Na verdade, o tempo não existe. Quem te temporaliza és tu, quem diz tempo és tu. Não Eu, apenas Tu. Não Nós, apenas Eles. Com tempo, sem tempo?! Não lutes, não o desafies, não o tentes vencer. O tempo não existe, o tempo emerge de ti e tal como ele emerge, ele volta a ti, totalizando-te, essencializando-te. Ainda assim podes matar o tempo, matando-te. Ou ignorá-lo, ignorando-te. O tempo é um mero rabisco da continuidade momentânea do motor da existência. Quando o motor avaria, o tempo pára, quando o motor arranca, o tempo corre, quando o motor pára, o tempo morre. Pára de correr com o motor e conseguirás parar o tempo" 
Não sorriu.
Respondi-lhe, respondi-me. "Não quero saber. O culpado és tu. Por todo o sofrimento, por me teres destruído. Quem sou eu!? Que sou eu!? Ao que se deve toda esta fraqueza!? Todo este vazio!? Vais-me matando aos poucos, mais dolorosamente que veneno. Vais-te apoderando de mim."
Olhou-me nos olhos.
Disse-me, disse-me. "Sim, o culpado sou Eu. O culpado és Tu. Pára o motor, o tempo morre e tu totalizas-te."