segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O corpo

Gostava de ser como os poetas e escrever sobre o que sinto. Ao invés, escrevo sobre o que não sinto.
E concluí-o, que não sinto o vento da vida. Apenas o vejo ao longe, sem nunca saber se ele é vento ou se apenas o finge ser.
Continuo então, a deambular como um estrangeiro em terras vãs, procurando ouvir os cantos dionisíacos que o vento pronunciava à sua Lua. (podia ouvir, já que não o sentia)
E então, enquanto o procuro neste vazio infinito a que chamamos tempo, vejo-a fugindo ao vento.
E o vento, que agora era mais delicado, olhava-a de soslaio, contemplando-a. Qual Petrarca poetizando à sua musa. Circundava-a timidamente ao mesmo tempo que a sentia. Sentia o seu corpo, tão leve e elegante, dançando para ele, sobre ele. Leveza, equilíbrio, elegância, sussurrava-lhe o vento, conquanto afastava os cachos de cabelos loiros que tendiam a cair-lhe pelos ombros, emoldurando-o, e cuja pele, da mesma cor que as mais belas das pérolas, era abonada com uns lábios carnudos, detalhadamente pintados de uma cor vermelha que fazia vibrar todo o seu rosto entre a pureza e o desejo, o angélico e o proibido.. E continuava a dançar, determinada a dar vida à arte.
O vento, divertido, com a beleza quase inefável de sua musa, continuava a afagar-lhe o rosto, cor-de-pérola, que apresentava ao Mundo uns olhos esverdeados que esboçavam o mesmo sorriso que os seus lábios, o mesmo sorriso de ironia e de gozo, face a todo o espectáculo que a vida era, e que só podia ser exprimido através da arte. E continuava a dançar, determinada a representar a arte da vida.
E assim, o vento decidiu assobiar-lhe para não dançar ao som do silêncio. E ela sorriu, e os seus dentes irromperam pelos lábios, enquanto rodopiava pelo ar, esforçando-se por dançar, e não por pensar. Divertido, o vento continuou a conhecer o corpo da sua musa irreverente. O seu corpo nu. E achou-a tão bela como um poema, cuja melodia das palavras se exprimia pelo ritmo presente na melodia dos seus movimentos que coincidiam perfeitamente com os assobios do vento e como tal, o seu corpo nu esforçava-se por acompanhar a arte presente na sua mente.
O vento, entusiasmado com o engenho artístico da sua amante, agitou-se sonante no ar e foi então que sentiu o corpo nu de sua musa a arrepiar, não de frio, mas de excitação. Ela achava que quanto mais forte o vento, mais forte poderia ser a sua dança. E o seu rosto modificou-se. Os seus lábios e olhos já não representavam a inocência dos anjos, mas a dor dos homens. E as suas pernas longas não aguentaram o peso da humanidade, os seus joelhos caíram no chão. E o vento, concordando com a sua artista soou mais sonante, e as rajadas de vento tornavam a noite tão temerosa que só a arte a poderia desafiar. E desafiou.
As mãos esconderam o rosto e o corpo estremeceu no chão, o seu corpo nu rodava no chão violentamente e os seus gritos atravessavam os assobios do vento, ela rodava e esforçava-se por rodar com o seu corpo inefável mas a inefabilidade já morrera, agora era tão humana como o vento, uma mera ilusão da existência. E a bailarina esperneava-se ao tentar reproduzir o homem enquanto continuava a criar um círculo ao rodar o seu corpo, agora vertical, expondo toda a sua intimidade. E a bailarina não o sabia, não o sabia que ao sair do círculo, morreria. Porque é no círculo que reside a fraqueza do homem. Ao desenhar-se como finito, não acredita no poder da infinidade da Arte e reduz-se à mortalidade. A bailarina não mais parou, porque sabia que se parasse morreria tais como os humanos.
E numa voz trémula que talvez já não mais representasse a Arte, murmurou: só sentirás o vento da vida, quando não o questionares, quando só o sentires que nem Caeiro.